ANAMARY BILBAO: O TRAÇO IMPERMANENTE DA MEMÓRIA
(ensaio para a Contemporânea #5 Desenho, pp. 180-183)

 



        Pensar o desenho no trabalho de AnaMary Bilbao, pode parecer mais fácil se partirmos das suas obras mais antigas, onde as camadas de gesso que cobrem o desenho são metodicamente raspadas por gestos que o mimetizam na forma e orientação, até o deixarem parcialmente descoberto. A ideia de uma arqueologia do traço, na saturação do papel, encontra aqui uma expressão que se situa entre o campo escultórico e o desenho. Porém, não são estas as obras de Bilbao que mais rapidamente me remetem para este medium, mas sim as várias séries de “desenhos sobre fotografia” que tem vindo a criar deste 2016, data em que inicia o projecto Vistas de Saturno.

 

        O corpo de obra de AnaMary Bilbao, embora repartido por diferentes suportes, pressente-se firmado na prática do desenho. Seja o desenho no papel, coberto de gesso e posteriormente redesenhado na sua escavação — uma procura do referente inicial soterrado sob finas, mas compactas camadas de pó; ou o desenho na fotografia — uma acção corrosiva sobre o suporte (seja ele o papel fotográfico ou o negativo em si) que cria uma imagem final, próxima aos negativos da gravura. É neste último que o presente texto se baseia, pois ainda que ambas as aproximações se revistam de um vincado interesse formal e conceptual, a linguagem visual e as intersecções teóricas e sociais da sua acção sobre a fotografia reverberam de uma outra forma, mais profunda e pessoal.

 

       Para contextualizar a evolução deste seu trabalho, importa referir Quando um sol se apaga, quem lhe restitui a luz? (2017), um conjunto alargado de fotografias que a artista encontrou para venda, provenientes de casas em processo de despejo. Nestes objectos (aqui não-imagens), Bilbao procura explorar o próprio material, o suporte fotográfico. A raspagem, que rasura totalmente a imagem revelada (por vezes com exceções de pequenos detalhes, que de tão abstratos, dificilmente são referenciáveis), é feita com lixa e consiste num processo moroso, em que a artista testa os próprios limites da resistência do material, muitas vezes só parando quando o mesmo já se encontra perto do momento de ruptura.

 

       AnaMary Bilbao e eu partilhamos este hobby do coleccionismo ou, para ser mais específica, uma vontade de salvar registos fotográficos da sua destruição numa qualquer lixeira. A pós-vida destas imagens poderá ser um mero exercício especulativo-ficcional, que se desenrola no pensamento, envolto nas personagens e nos objectos que as habitam. Mas, para Bilbao, com o final da vida “útil” (assumindo que a utilidade termina quando cessa a necessidade das memórias que ali se encerram — momento em que passam a ser meras possibilidades), não há necessidade de especular sobre o que está, ou não, representado — a pós-vida das imagens pode, então, ser a ficção do papel e o próprio conceito de memória. Daí o meu copioso interesse pelas obras de Bilbao que trabalham a(s) fotografia(s): aliado a este ímpeto recolector, está um forte desejo de discernir o se que está (ou poderia estar) a ver, como se de um puzzle se tratasse — um desejo que se estende no tempo sem nunca culminar no prazer da descoberta material, mas que recompensa a atenção que se lhe dedica com a sensação de estar à beira de “descodificar” as possibilidades ocultas do medium fotográfico.

 

        É, contudo, em Todas as formas sublimes são transitórias (2018), com imagens impressas dos negativos que a artista raspou, que deixamos de nos reportar, apenas e só, ao suporte e ao processo — aqui também importa o conteúdo, o que se apaga. Provenientes de Joanesburgo (África do Sul), estes negativos continham imagens que marcavam, ou registavam, a existência de campos e minas de extracção de ouro. Nestes registos, a única parte que a artista não elimina é o céu, que na revelação dos negativos se converte numa mancha branca, ocupando a parte superior da imagem. Por contraste, a negro, é possível entrever a terra, quase indissociável da memória colectiva desta cidade — a sua história marcada pelo processos de extracção do ouro, associados por sua vez aos processos de construção do capital e das instâncias sócio-capitalistas da riqueza e da pobreza (ideia já aqui questionada pela utilização de um medium anacrónico — a fotografia analógica). Após um período inicial de recolha intensa, a mina esgota e é abandonada, acabando por ser coberta naturalmente por vegetação. Assim, muitas destas estruturas não são já identificáveis, tendo sido, de certa forma, também elas apagadas. Rasuradas pelo tempo e pela natureza, as minas parecem querer renunciar a História a esta história e sarar a ferida, embora ainda surjam casos onde a lógica do capital prevalece, resgatando o passado com fins lucrativos (como o caso da mina onde foi criado um parque de diversões, com o irónico nome de “Gold Reef”).

 

      Com maior evidência, este último conjunto de obras revela uma curiosa ligação entre as intervenções que a artista opera, sobre fotografia, e a prática do desenho, na gravura. Remetendo-nos, por exemplo, para as paisagens gravadas por Rembrandt no séc. XVII, e focando-nos nas suas semelhanças formais, não podemos negar a natureza antagónica dessa relação: Bilbao risca para obliterar uma imagem, enquanto que, na prática da gravura, é o risco o que cria a imagem. Simultaneamente, devemos também considerar o método de trabalho que Rembrandt desenvolveu face à gravura: embora nas suas paisagens iniciais o desenho fosse, por vezes, gravado na placa in situ, quase como se de um registo fotográfico se tratasse, mais tarde o artista sobrepõe à plana paisagem holandesa elementos imaginados (e imaginários), como edifícios estranhos ou montanhas que nela nunca se poderiam encontrar. Rembrandt, tal como Bilbao, entendeu como a memória de um sítio (ou de qualquer outra coisa) é, assim, tão facilmente alterável. Quer seja pela obliteração do seu registo ou pela introdução de elementos que nele não existem, as reproduções das reminiscências que hoje observamos mostram como a impermanência da memória é, em si, uma temática inesgotável, perdurando ao longo do tempo e dos diferentes media artísticos e arquivísticos.

 

      A raspagem que a artista emprega afigura-se, de certo modo, a um processo de homogeneização (eliminando os diferentes gradientes da escala de cinzentos que caracterizam e delimitam as fotografias), no qual a artista encontra semelhanças com os mecanismos de historicização e construção de memórias sociais e afectivas. A construção da história global, local, ou até mesmo pessoal é um processo que assenta na exclusão de outros discursos e histórias paralelas, favorecendo aquilo que dela está mais próximo — dos seus valores, objectivos e referenciais. Mas, contrariando o que comummente se diz sobre o passado estar escrito na pedra, ou de este assumir uma forma estática ou estagnada, AnaMary Bilbao relembra-nos que o passado é imprevisível e mutável. Como afirma Karen Barad, o passado não está “fechado”, podendo ser alterado e redimido (embora os seus efeitos não possam ser apagados): na verdade, a memória não é um assunto do passado, na medida em que ela o recria de cada vez que é invocada. Ao apresentar estes desenhos sob a forma de imagens fotográficas que invertem o propósito da fotografia (registar um momento, salvá-lo para a posterioridade, congelá-lo para o futuro), AnaMary Bilbao procura essa memória do esquecimento, da perda, trazida pelas infinitas possibilidades criadas pelo rasurar da reminiscência — a hipótese de novas interpretações, novas imagens, sobre os fantasmas dum passado que se pode esquecer, mas nunca menosprezar.

 

        Ao olhar para as obras de AnaMary Bilbao, assombrada pela presença sensível do desenho, imagino-as como uma quase inversão da gravura: tal como nas gravuras, a artista retira uma parte do todo para criar a forma na diferença, porém, o que ela aqui extrai não é o verso, mas a forma em si. Em vez de desenhar os socalcos que, consoante a superfície a gravar, irão reter ou recusar a tinta para formular uma imagem, Bilbao elimina qualquer relação com algum possível referente do real, abdicando da forma (num acto que tem tanto de consciente como de premeditado) para questionar o modo como enformamos (e materializamos) a nossa memória pessoal e conjunta. Apagar a forma num gesto de tal maneira consciente e premeditado faz com que, mesmo sem a sua presença, a mente vagueie sempre em torno do conceito de (e à própria) forma.

 

        O acto de apagar, assim como o seu rastro, são também desenho[1]. Importa afirmar essa fissura, porque AnaMary Bilbao sabe que a rasura sem rastro é perigosa e historicamente responsável por sistemáticas, e violentas opressões: é por isso que a sua rasura nunca é completa, nunca é inconsequente, mas sim precisa, meticulosa, deixando sempre um fantasma espectral, uma pista. Essa pista, independentemente do que lá possa ter estado anteriormente (ou não), e do que lá procuramos encontrar (ou não), indica-nos sempre, qual compasso, o mesmo lugar, um limbo que nos invade como o nevoeiro, quando sentimos na ponta da língua as imagens e as palavras que esquecemos — o lugar da impossibilidade da morte da memória.




Marta Espiridião, 2021



[1] Recorde-se o famoso Erased de Kooning Drawing (1953), de Robert Rauschenberg, onde o artista apaga um desenho de Willem de Kooning e apresenta a folha em branco, emoldurada.
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