INSCRIÇÃO DE APAGAMENTO

(ensaio escrito para a exposição individual O último brilho da estrela que morre na Galeria Uma Lulik__, Lisboa, Portugal)





Talvez nenhum outro fenómeno nos tenha deixado, simultaneamente, tão conscientes da nossa mortalidade e tão inebriados com a sua hipotética superação quanto a fotografia. Não que nos fosse impossível criar imagens antes do aparecimento da técnica fotográfica, mas é indiscutível que a raridade e a muito estreita circulação das imagens pré-fotográficas lhes determinavam um regime de culto e uma função utilitária que tem muito pouco que ver com o papel que a fotografia ocupa na economia biografico-sentimental da contemporaneidade. O objectivo maior da imagem pré-fotográfica era a sedimentação do poder dos representados, a afirmação e a propagação das suas narrativas e das suas ideologias, facto que as tornava instrumentos de persuasão, liturgia e idolatria social. Nesse sentido, elas eram, essencialmente, políticas. A domesticação da imagem tem lugar apenas com o aparecimento da fotografia e com a disseminação e democratização que ela promove. Em certa medida, a fotografia privatizou a imagem e garantiu-lhe não só um lugar preponderante na construção da identidade pessoal, como a transformou na moeda franca para as trocas simbólicas dentro das mais variadas formas comunitárias, com a família à cabeça.


Talvez por isso o neologismo “biografema” pareça tão acertado para falarmos da fotografia, mesmo nos dias que correm. Cunhado pelo intelectual francês Roland Barthes no início dos anos 1970, este termo sublinha, de uma mesma pernada, o carácter fragmentário da fotografia (a fotografia é sempre uma parte, nunca um todo) e o facto de ela se situar, inevitavelmente, a meio caminho entre a realidade e a ficção: entre a realidade que retratou e a ficção que o mencionado carácter fragmentário instiga. Quando alguém resgata negativos e álbuns de fotografia provenientes de casas em processo de despejo, como AnaMary Bilbao tem vindo a fazer nos últimos três anos, sabe que tem entre mãos uma peculiar colecção de biografemas – um conjunto de indícios de uma realidade que não testemunhou, mas através dos quais se teceu a malha da biografia fáctica, sentimental e relacional de um Outro. Nessa qualidade, o que se tem entre mãos são instâncias para uma activação emocional, gatilhos de memória afectiva que permitiriam a esse Outro recuperar, invocar e, em certo sentido, estender a presença de um evento, de um ente passado, talvez mesmo de uma versão anterior de si mesmo, para o presente – ensaiar a hipotética superação da morte de que falámos no início deste texto. Escolher apagar, rasurar, desfigurar esse resíduo visual que perdura na face das impressões fotográficas ou na transparência do negativo, equivale a desfazer para sempre o nó que a fotografia aperta na linha do Tempo; significa emaciar a História, negar-lhe um dos seus instrumentos dilectos, reafirmar, a cada raspagem, a perda inevitável e a absoluta transitoriedade de tudo o que nos constitui e rodeia.

 

Talvez estejamos, então, face a um conjunto de imagens – agora feitas desenho – que respondem à paradoxal condição de inscrições de apagamento. Mas talvez a sua ambição não se restrinja ao apressar de um processo natural de erosão. Talvez a sua maior virtude seja a de saber suspender essa erosão forçada no ponto exacto em que ela se torna, novamente, produtiva. Porque em «O último brilho da estrela que morre», AnaMary Bilbao força a mão do Tempo e precipita a sua trágica violência. Cada sulco sobre a imagem encontrada é um gesto duplo de apagamento e de criação: quanto mais desaparece o biografema, menos se tolhe a imaginação daquele que vê; quanto menos se satisfaz a sua irreprimível pulsão escópica, mais se estimula o seu enamoramento com a mecânica da sugestão. No espaço em ruínas da imagem desfigurada, o espectador já não encontra relatos, nem conforto, nem memória – apenas espelhos e fantasmas no lugar perfeito de toda a projecção.

 

Bruno Marchand, Dez. 2018

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