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O (VI)VER-SE PARA LÁ DA MORTE (ensaio publicado na revista Contemporânea [3 Jan. 2019, Ed. 01-02] por ocasião da exposição individual O último brilho da estrela que morre na Galeria Uma Lulik__) ◊ Uma estrela demora biliões de anos a morrer. Primeiro encolhe, depois expande, depois explode. Dependendo do seu volume, pode transformar-se num objecto de menores dimensões, ou pode implodir num buraco negro. A sua luz pode perdurar no universo durante milhares de anos (ou mais) após a sua morte. As estrelas estão tão longe que o último brilho que emitem ao morrer só chega à Terra muito depois da sua morte. Olhar as estrelas no céu é, de certa forma, olhar para o passado — a luz que vemos pode, na verdade, já se ter extinguido na sua fonte, mas continua a percorrer a distância que a separa de nós. A analogia entre a fotografia e as estrelas, mais do que poética, é física: o brilho que vemos no céu pode já se ter extinguido no passado, mas continua a existir aqui no presente, e continuará a existir, até culminar na intersecção com um futuro longínquo. O céu estrelado não é mais que uma fotografia que preserva a memória das estrelas, uma memória que perdura indefinidamente, mesmo após a sua morte — reforçando a ideia reincidente de uma intrincada relação entre a fotografia e a morte.(1) O último brilho da estrela que morre, de AnaMary Bilbao, pode inicialmente parecer uma exposição quase abstracta, da qual se sabem, à partida, duas coisas: que fala sobre a condição da fotografia e sobre a memória. É possível entrever também dois momentos distintos na exposição, diferenciados tanto pelas origens e características das imagens utilizadas (e pela escolha da artista em revelar ou omitir o contexto), como pela escolha ponderada e precisa do que é subtraído e do que é preservado. O primeiro momento, que inclui o conjunto de 9 fotografias Quando um sol se apaga, quem lhe restitui a luz? (2017) e a imagem Renascimento por transformação II, parte de fotografias que AnaMary Bilbao obteve de álbuns que encontrou à venda, procedentes de casas em processo de despejo. Nestes objectos (aqui não-imagens), Bilbao procura explorar o próprio medium, o suporte fotográfico. A raspagem, que rasura totalmente a imagem anterior (por vezes com exceções de pequenos detalhes, que de tão abstratos dificilmente têm referentes), é feita com lixa e é um processo moroso, em que a artista testa os próprios limites da resistência do material, muitas vezes só parando quando o mesmo já se encontra perto do momento de ruptura. Em Renascimento por transformação II, todo o negativo é raspado, dando lugar a um fenómeno curioso: é nesta rasura da imagem que se cria uma nova imagem, constituída pelas marcas do processo de eliminação. O segundo momento, Todas as formas sublimes são transitórias (8 e 4), parte também de imagens impressas de negativos raspados, mas já não trata apenas e só do suporte e do processo — aqui também importa o conteúdo, o que se oblitera. Provenientes de Johannesburg, África do Sul (que a artista visitou este ano), estes negativos continham imagens de campos e minas de extração de ouro, utilizadas para registar e marcar os mesmos. A única parte da imagem que a artista não elimina é o céu, que na revelação dos negativos se transforma na mancha branca que ocupa a parte superior da imagem. Por contraste, a negro, é possível entrever a terra, quase indissociável da memória colectiva desta cidade, pela sua história marcada pelo processos de extracção do ouro, associados por sua vez aos processos de construção do capital, e das instâncias sócio-capitalistas da riqueza e da pobreza, sempre em nome de um tal de “progresso” (ideia aqui também posta em causa pela própria utilização de um medium já anacrónico, a fotografia analógica). Bilbao conta que, após o período inicial de recolha intensa, a mina esgota e é abandonada, acabando por ser encoberta naturalmente por vegetação. Muitas das minas já não são identificáveis, foram de certa forma também elas apagadas, rasuradas pelo tempo e pela natureza, que parecem querer renunciar a esta história e sarar a ferida — embora, como a artista referiu, também haja casos em que as possibilidades de capitalização falam mais alto, como na mina onde foi criado um parque de diversões com o nome (que quase poderia ser irónico) de “Gold Reef”. O processo de raspagem de AnaMary Bilbao acaba por ser, de certa forma, um processo de homogeneização (eliminando os diferentes gradientes da escala de cinzentos que caracteriza e delimita as formas registadas em fotografias), e no qual a artista encontra semelhanças com os processos de historicização e de construção de memórias sociais e afectivas — a construção da memória e da história local, global, universal, ou até mesmo pessoal, é um processo que parte sempre da exclusão de outros discursos e de outras histórias paralelas, favorecendo aquilo que está próximo dela mesma, dos seus valores, objectivos e referenciais. Mas, contrariando o que commumente se diz sobre o passado estar escrito na pedra, estático e estagnado, o passado é imprevisível e mutável: como afirma Karen Barad, o passado não está “fechado”, pode ser alterado, redimido (embora os seus efeitos não possam ser apagados), e na verdade, a memória não é um assunto do passado, porque o recria de cada vez que é invocada.(2) A mão humana pode alterar a história, ao desvelar os silêncios e as invisibilidades — afinal, também os silenciados e os invisíveis produzem significados. Os trabalhos que Bilbao apresenta na Galeria Uma Lulik são imagens fotográficas que invertem o propósito da fotografia: registar um momento, salvá-lo para a posterioridade, congelá-lo para o futuro. Mas a artista não torna esta tarefa fácil: o objectivo aqui não é o de rasurar completamente a história até esta cessar de existir, mas sim de questionar a própria história, de lembrar que, por cada momento registado, há milhões de momentos que fugazmente se eclipsam. E essa memória do esquecimento, da perda, é trazida pelas infinitas possibilidades criadas pelo rasuramento da reminiscência — a hipótese de novas interpretações, novas imagens, que não serão criadas (apenas) pela artista mas por quem olha, pois onde anteriormente esteve uma imagem-história (porque todas as imagens contam, de uma forma ou de outra, uma história), sobra agora um espaço vazio, e por vezes um resquício, um ponto, a partir do qual podemos traçar uma outra história. AnaMary Bilbao rasura as imagens, obliterando as impressões, “escavando” o papel fotográfico, muitas vezes até ele perder a sua reconhecível textura brilhante e suave, deixando entrever a fibra celulosa que o compõe. O acto de escavar, indissociável da prática arqueológica, é, por norma, uma acção cujo objectivo é desenterrar algo, pondo-o a descoberto (muito associado também à prática artística, onde escavando um pedaço de matéria-prima, como acontece muitas vezes na escultura, se constrói uma forma constituída por aquilo que não se retira). Aqui inverte-se aquele que seria o seu mais imediato objectivo: em vez de escavar para revelar uma memória escondida, coberta pelo tempo, escava-se para eliminar a memória, obliterando para a eternidade o momento congelado no tempo. Esta raspagem-escavação explora a ideia de pós-vida das imagens (que é, na verdade, uma procura da memória puramente visual), ideia essa que tem pautado o trabalho de AnaMary Bilbao desde o início, como se pode ver em Uncovering (2013), ou Presente Passado (2014), em que a artista cobre os seus desenhos para depois tentar revelá-los de novo, raspando a superfície ou escavando o mesmo desenho sobre ela (sendo que o revelado são muitas vezes pequenos detalhes difusos). Estes são dois exemplos entre muitos, pois em todas as suas obras uma coisa é certa: apesar do imperativo das coisas, é possível agir sobre elas, mesmo que apenas com acções demoradas, gestos repetidos sobre gestos repetidos, numa mise en abyme em que a memória (muitas vezes obliterada) se reitera a ela própria. AnaMary Bilbao quer apagar, quer fazer desaparecer estas memórias, para que ao mesmo tempo elas possam ser relembradas — também ela sabe a impossibilidade da morte da memória, que perdura indefinidamente como o brilho de uma estrela que já morreu. Em Photography: a little summa, Susan Sontag resume tudo isto da melhor forma: “13. (…) of one thing we can be sure, about this distinctively modern way of experiencing anything: the seeing, and the accumulation of fragments of seeing, can never be completed. 14. There is no final photograph.” Notas: (1) A autora Margarida Medeiros dedica o sub-capítulo “Fotografia e pulsão de morte” do seu livro Fotografia e Verdade: uma história de fantasmas, a este tema. (2) “Interview with Karen Barad”, in New Materialism: Interviews & Cartographies, Rick Dolphijn & Iris van der Tuin. Marta Espiridião, Jan. 2019 |