Retratos de uma artista enquanto trabalha:
Prelude (2024) de AnaMary Bilbao
(ensaio sobre a obra Prelude [2024], por Alejandra Rosenberg Navarro e publicado na revista Contemporânea, Maio 2024)



Clarões de imagens e sucessivos estrondos dão início a Prelude (2023) de AnaMary Bilbao. Flashes de luz revelam o close-up de um pequeno diabo vermelho que dança à volta de uma natureza morta. No romance A paixão segundo G.H., Clarice Lispector escreve "–– –– –– –– –– ––" (3). Uma linha pulsátil, ou uma série de batimentos, inicia e conclui este romance, no qual a protagonista procura a matéria primordial da vida.

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Tentativa 1: Quando me encontro com AnaMary Bilbao, ela traz consigo um pequeno frasco de vidro. Dentro dele está uma solitária mosca-lanterna manchada. Pouco depois do nosso encontro, Bilbao envia-me uma mensagem: "A mosca-lanterna morreu.”

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Este ensaio, que me foi confiado antes de ver a obra finalizada, é o resultado de conversas com a artista e explora as tensões, associações e gestos presentes no processo de criação de uma peça de imagem em movimento com vários canais.

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Tentativa 2: Bilbao mostra-me um grande frasco de vidro com três moscas-lanterna manchadas e algumas folhas. As moscas-lanterna produzem um zumbido enquanto esvoaçam, e ela pergunta: "Como posso filmá-las?” e “Quanto tempo viverão?”. Em Nova Iorque o inverno está prestes a chegar e em breve as moscas-lanterna deixarão de voar pelas as ruas. Alguns dias depois, recebo novidades de Bilbao: apesar dos seus esforços para mantê-las vivas, todas morreram.

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No outono de 2021, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos emitiu um aviso. Se alguém avistasse uma mosca-lanterna manchada preta e vermelha, deveria esmagá-la, pisá-la. Matá-la. Descrita como "espécie invasora" e "predador natural", a mosca-lanterna parece ter chegado a Nova Iorque em 2020, vinda da China. Hoje, no outono de 2023, todos os esforços para controlar a presença da mesma revelam-se inconsequentes, já que esta espécie povoa ainda em grandes números as ruas da cidade.

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Tentativa 3: Um frasco ainda maior com várias moscas-lanterna. “Enquanto as apanhava”, recorda Bilbao, “as pessoas aplaudiam-me como se eu estivesse a libertar os nova-iorquinos do seu pior inimigo. Mal sabiam eles que eu só queria mantê-las vivas.” Desta vez, a artista abre a tampa várias vezes por dia para garantir que há oxigénio no novo habitat das moscas-lanterna. No entanto, chegado o final da semana, todas estão mortas no fundo do frasco. O que Bilbao desconhecia até ao momento é que, em estado adulto, estas moscas tem uma esperança média de vida de cerca de sete dias e, por isso, todos os seus esforços para preservar a vida das mesmas seriam em vão.

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"A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam.
Também eu, que aos poucos estava me reduzindo ao que em mim era irredutível, também eu tinha milhares de cílios pestanejando, e com meus cílios eu avanço, eu protozoária, proteína pura. Segura minha mão, cheguei ao irredutível com a fatalidade de um dobre (…). Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.” (Lispector 48).

G.H., a personagem principal de A paixão segundo G.H. de Lispector, depara-se com uma barata num quarto recentemente vazio. Ambos os seres entram em contacto, as suas formas e fluidos fundem-se e interpenetram-se. Esse encontro desencadeia em G.H. uma experiência corpórea mística que faz ruir todas as suas cosmovisões e conhecimentos prévios sobre a sua identidade, sobre o eu, sobre as condições de um sujeito vivo. O que começou como uma entidade externa, um elemento não-humano que a perturba, acaba por se tornar parte do seu próprio corpo — e ela, parte da barata. A repugnância inicial da personagem em relação ao outro animal no quarto leva-a a transcender a divisão entre humano e não-humano, fundindo ambos os corpos e adotando uma conceção de vida que está para além do humano. "Eu havia humanizado demais a vida", confessa G.H. (Lispector 11).

"Confrontei-me profundamente com o termo 'não-humano'", explica-me Bilbao. "Acho problemática a dicotomia humano/não-humano, no modo como nos coloca numa posição supremacista em relação ao resto do mundo." O seu trabalho gira, assim, em torno da figura da mosca-lanterna para articular um discurso político sobre ontologia que vai além dos significados fixos do eu e do outro, do humano e do não-humano. Em vez disso, a mosca-lanterna funciona como uma representação simultaneamente literal e metafórica de como o atual mercado global capitalista produz, coloca em circulação, e por fim aliena toda a alteridade.

No entanto, o trabalho de Bilbao não se centra apenas numa entidade não-humana através da figura da mosca-lanterna. Nas suas várias camadas, Prelude desafia a distinção entre agência humana, antropomorfismo e outras formas de inteligência, sejam elas animais ou criadas pelo ser humano.

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No final de Prelude, "La mort”. No entanto, la mort – a morte – apenas antecipa o que está por vir. O gesto de “La mort” escrito à mão revela uma energia e um movimento que estão ausentes das figuras que se assemelham a marionetas, apenas animadas pela movimentação da própria câmara. O antropomorfismo inquietante das marionetas aponta para algo que se assemelha a, mas que não reproduz, uma figura humana ou animal. No entanto, em substituição dos seus indicadores, estes símbolos evocam uma vida diferente daquela que conhecemos.

Na sua obra canónica A Câmara Clara, Roland Barthes lembra-nos como o cinema, ao contrário da fotografia que fixa figuras "como borboletas [preservadas]”, permite que os seres continuem a viver (56–57). O presente cinematográfico está vivo, carregando o seu referente sem estar amarrado a ele. As diabólicas moscas-lanterna a que Bilbao dá corpo, ou os diabos das moscas-lanterna, dançam em stop motion, recusando-se a serem afixadas como uma borboleta murcha e morta. No seu movimento estático, a mosca-lanterna de Bilbao tremula, confrontando a humanidade da marioneta semelhante a um palhaço, antropomórfica e inerte.

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A obra de AnaMary Bilbao questiona permanentemente noções de origem e conclusão. "Todos os meus processos andam à volta do início e do fim da imagem", explica a artista em conversa. Nos seus trabalhos anteriores, Bilbao manipulava mecanicamente imagens encontradas – incessantemente raspando, fazendo intervenções em filmes analógicos para revelar a sua materialidade ou o que está para além dela – procurando desafiar ilusões de temporalidade linear e caducidade. Essa procura continua na obra que atualmente desenvolve, mas desta vez o seu arquivo não é uma coleção física de objetos encontrados, mas antes a infindável coleção de imagens produzidas pela inteligência artificial DALL·E.(1) 

Pela primeira vez, Bilbao não está em contacto direto com a materialidade da imagem, mas relaciona-se sim com as representações virtuais de imagens artificialmente geradas. Como explica a artista, “O sistema DALL·E não tem fim; ele oferece sempre mais e mais variações da mesma imagem. Por isso, a imagem nunca está terminada; nunca encontra a sua conclusão. Ela é transformada por novas informações, ao mesmo tempo que produz novos dados. O algoritmo não tem um final à vista.”

“Eu estava obcecada em perceber se alcançaria um fim”, continua Bilbao, “procurando um momento em que a imagem chegaria a um ponto de saturação. Isso não aconteceu. Quando achei que tinha chegado a um possível fim, a figura com que estava a trabalhar transformou-se numa outra que parecia o Ronald McDonald, incluindo até o característico logotipo na camisa.” Participando naquilo a que a inteligência artificial chama de "aprendizagem profunda" (conceito usado pela primeira vez na pedagogia centrada no ser humano), o DALL·E recolhe referências do arquivo inesgotável da Internet ao mesmo tempo que aprende com os dados que os utilizadores introduzem. Assim, a busca da artista pelo limite da capacidade de criação da inteligência artificial não a conduziu a um vazio abstrato, como ela esperava, mas sim ao expoente do capitalismo: o logotipo com os Arcos Dourados da McDonald's, a tão conhecida rede multinacional estadunidensenorte-americana de fast food. A referência da figura é claramente Ronald McDonald, mas a semelhança é assustadora: as feições aparecem distorcidas, como se estivesse a derreter, e ela paira no vazio como um boneco semelhante a um palhaço. Talvez Bilbao tenha encontrado o fim, ou um possível fim, na forma de uma representação simbólica pós-apocalíptica do Capitaloceno.

“La mort” no final de Prelude articula um trocadilho com “L’art" (as imagens em movimento são o resultado da manipulação que Bilbao faz de uma cena do filme Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard, onde “la rt” é transformado em “la mort”) – a morte da arte, esclarece  a artista em conversa comigo, dada a criação da experiência estética mercantil pela inteligência artificial. No entanto, penso nas possibilidades artísticas post mortem produzidas pela IA. Há quase um século, Walter Benjamin expôs a célebre ausência de aura em imagens de reprodução mecânica, uma afirmação que tem sido incessantemente contestada pelos amantes e criadores de fotografia e da imagem em movimento. Até onde poderá, então, uma prática artística baseada na IA levar-nos esteticamente?

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O fim é apenas o prelúdio do que está por vir. A circularidade de Bilbao entra novamente em jogo. Trabalhando com o sistema DALL·E como co-criador, a artista projeta imagens de IA e filma a projeção com uma câmara de 16mm. Os movimentos rudimentares da câmara Bolex indicam a produção e reprodução mecânica das imagens de IA. Mesmo que a digitalização pareça desmaterializar a produção de imagens, a câmara analógica a que Bilbao recorre lembra-nos de como o digital está ligado ao mundo analógico: quilómetros de centros de dados e servidores tornam possível a aparente imaterialidade do reino visual digital.

O filme é revelado e editado analogicamente. Em seguida, Bilbao digitaliza as imagens, prepara-as para uma nova edição e para serem projetadas numa instalação de múltiplos canais. Os diferentes suportes colapsam entre si. As tecnologias de gravação de imagem que parecem atingir o seu limite (ou que se revelam "obsoletas", como alguns diriam) não são apenas utilizadas pela artista para questionar a materialidade da própria imagem. Como aqui foi dito, Bilbao também combina essas tecnologias de gravação com imagens produzidas por IA: la mort de l'image, a morte da imagem, leva-nos, pois, à natureza vital da sua vida material. Após G.H. perceber a essência da vida graças ao seu encontro com o inseto, Lispector encerra o seu romance com o pulsar eterno, "–– –– –– –– –– ––" (189).


Alejandra Rosenberg Navarro, Nov. de 2023


Obras citadas:
Barthes, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Traduzido por Manuela Torres. Edições 70, 2017.
Benjamin, Walter. A Obra de Arte na Época da sua Reprodução Mecanizada (tradução portuguesa de A Obra de Arte na. Era da sua Reprodutibilidade Técnica [1935-1936]). Traduzido por João Maria Mendes. Escola Superior de Teatro e Cinema, 2010.
Godard, Jean-Luc. Pierrot le Fou. 1965.
Lispector, Clarice. A Paixão segundo G.H. Relógio D’Água Editores, 2000.

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1) Desenvolvido pela organização OpenAI, DALL·E — nomeado em homenagem ao artista espanhol Salvador Dalí e ao personagem antropomórfico do filme da Pixar, WALL-E — é um sistema que utiliza inteligência artificial para criar imagens a partir de descrições ou instruções textuais. Saiba mais em: https://openai.com/


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