Nas Imagens de AnaMary Bilbao o Azul Nunca é o Mesmo

(Revista Contemporânea, Ed. 04-05-06 2021)



AnaMary Bilbao continua a explorar a imagem fotográfica enquanto espaço do visível e do invisível. Mas em J’avale la vague qui me noie le soleil de midi, exposição patente na Fundação Leal Rios, em Lisboa, com o fôlego de um gesto que permite revelar a presença de espectros, fantasmas, caminhos e palavras. Entre a ficção e a história, num desejo de redenção. O seguinte texto nasce do encontro com as obras e de uma conversa com a artista.

 

Para se escrever sobre J’ avale la vague qui me noie le soleil de midi de AnaMary Bilbao, a decorrer na Fundação Leal Rios, é oportuno começar pela literatura. Palavras, frases vêem-se (ou lêem-se) luminosas, por vezes incandescentes:  Le ciel étai immense, it etái pur, et j’ aurais voulu rie dans l’eau; le ciel était d’un bleu vif, mais tout avait lieu comme si l’orage allait éclater; ou et j’aurais pu croire, émerveillé, que nous tombions dans le vide du ciel. A artista retirou-as do romance Le bleu du ciel (1935) [1] da autoria do escritor francês Georges Bataille. Aparecem e (algumas) quase desaparecem em fundos acinzentados, cor de pedra, onde se dispersam manchas, riscos, iridescências. Sob o foco intenso das luzes dos projectores, esses fundos vão revelando as páginas de um livro, de outro livro que alguém fotografou. Desse gesto anónimo, sobreviveram os negativos de vidro encontrados pela artista e, agora, iluminados em folhas de papel pergaminho.



É uma prática que AnaMary Bilbao tem tornado recorrente, a de revelar e transfigurar imagens perdidas ou encerradas em negativos de vidro ou película. Descrevê-la como a de uma respigadora não será o mais rigoroso. A artista resgata as imagens da escuridão para as transformar e, no fim, tornar visíveis, não como eram, mas como podem vir a ser. O que a interpela nessas coisas que ficaram por revelar? Uma aura indefinida, uma possibilidade de ficção? “Definitivamente uma possibilidade de ficção”, respondeu à Contemporânea numa conversa por email.



“Pegar em algo real e potenciar a ficção. A ficção tem muito de real, o real tem muito de ficção. Sempre me pareceu essencial manter vivas estas duas realidades, fazê-las conviver lado a lado, porque acrescentam muito uma à outra e esgotam-se uma sem a outra. Diria que se queres dar corpo a tua ficção, tens que regressar à realidade e vice-versa”.



A ficção surge de dois lugares. Da literatura, na forma de um sopro, de eco, e do trabalho específico com as imagens fotográficas. A obra de Georges Bataille é a fonte de uma mise-en-scène invisível, criadora de um ânimo que envolve a exposição (não é única fonte, como se verá). Descreva-se, brevemente, o pequeno romance escrito em 1935: narra as relações amorosas de Henri Troppmann com as personagens femininas Dirty, Lazare e Xénie, num ambiente sufocado de presságios. As estrelas comunicam um absurdo hostil, do céu descem grandes insetos negros, o sol enlouquece. Troppmann, alter ego de Bataille, move-se num limbo existencial, entre o sonho e a realidade, a exultação e a agonia, a vida e a morte. À sua volta, a Europa — a guerra civil espanhola anuncia-se — tem o aspecto de um abismo, a beleza e a fealdade confundem-se, o desejo e a repulsa sobrepõem-se mutuamente. O desejo de um reencantamento do mundo é suspenso, tornado visível e invisível, como nas frases do livro — transformadas em versos — que a artista tornou suas e de todos os visitantes.



“As frases foram escolhidas porque, ao retirá-las do contexto em que estavam, pareciam não ter um começo nem um fim. Procurei, com o recurso a estas citações, o acentuar de um deslocamento e uma libertação face ao referente original. No entanto, o referente original nunca deixa de lá estar ainda que não esteja. É um jogo entre o que permanece e o que ameaça desaparecer, nada fica exatamente, nem nada desaparece derradeiramente. Esta obra, como, aliás, todas as obras desta exposição, vive no regime da denegação, promove a sensação de que há alguma informação que não foi dada, do mesmo modo que sustém a ideia de que há ainda algo por chegar”.


 

Ver e revelar



Subjacente à nossa relação com o mundo, encontra-se uma relação com a imagem e o significado da imagem. Daí a artista retira a questão ou o problema que inscreve no cerne do seu trabalho: a dinâmica entre o visível e o invisível. De que modo as duas experiências se manifestam, se recriam, se contagiam? Que dialéticas inventam? Como e quando começa uma e acaba a outra?  A literatura não é alheia às relações entre o visível e invisível, também as engendra, mas J’avale la vague qui me noie le soleil de midi privilegia os sentidos da imagem fotográfica. A poética de AnaMary Bilbao é a do olhar, o seu horizonte é o da visão. Parafraseando a escritora Janet Malcolm, se olharmos muito tempo para uma fotografia desta exposição, ela começará a falar connosco. E, todavia, AnaMary Bilbao não se considera fotógrafa. Não faz imagens fotográficas, revela-as. Nesse sentido, faz nascer imagens novas, pelo enquadramento, pela montagem, por um olhar que as torna outras. Já não (são) as mesmas.



“Interessa-me a transformação, a capacidade das imagens se regenerarem, de estimularem novos conteúdos, dependendo do modo como são expostas e enquadradas. De num novo contexto poderem gerar uma leitura diferente da primeira. Não pretendo impor-lhes uma narrativa final, pelo contrário. O que me interessa nas imagens é que nada as encerra. Não lhes conheço a origem nem saberei nunca os limites do seu destino. Esta liberdade torna tudo possível e é esta imensidão do possível que permite o meu trabalho existir. Trata-se de uma ideia algo godardiana. Não importa tanto de onde tiramos as coisas, mas para onde as levamos. É nessa vastidão de possibilidades que encontras alguma esperança otimismo. Tudo continua por fazer”.



Os dípticos I am still not sure how long we will stay here and where we will go then, provenientes de negativos de vidro e de película, formam e são formados por diferenças de cor, de detalhe e motivo. As primeiras imagens são de superfícies abstractas e escamadas, semelhantes à de uma parede rochosa, e, como se iluminadas por dentro, projectam uma tonalidade azul. As segundas são de caminhos, carreiros, trilhos fotografados algures em Portugal, entre os anos 30 e 40 do século passado. A associação com o título, uma frase de Walter Benjamin retirada da sua correspondência com Gershom Scholem, alude a um trânsito suspenso entre a ficção e realidade, entre o desejo de permanência e a necessidade forçada de abalar. A experiência de alienação do mundo como experimentada por Bataille não anda distante, ainda que Benjamin, ao contrário do escritor francês, tenha sido politicamente expulso do mundo [2]. Lado a lado, as imagens furtam-se às expectativas dos visitantes. Afinal a menos realista é a mais concreta, a mais nítida, enquanto aquela mais próxima do género pictórico (da paisagem), se revela a mais nebulosa e incerta, a que resiste, opaca, à luz. A disposição de AnaMary Bilbao para revelar o que ficou por ver e interpretar do passado, a partir da imagem fotográfica, permite duas experiências: pensar a morte e a redenção das imagens e evocar uma condição improvável: a do artista como um contador de histórias, ainda que não com os modos tradicionais de narrar.


 

“O resgate das imagens do passado interessa-me como hipótese de transformação. O passado não tem lugar sem uma perspectiva de futuro que o transforme. Esta transformação está muito ligada à morte e à redenção. De certa forma, penso que é necessário morrer, mesmo que simbolicamente, para abraçar uma possibilidade de redenção, que não mais é do que a possibilidade de um futuro. Reposicionar imagens, contar histórias, criar lugar para novas narrativas, tudo regressa ao passado para se abrir ao futuro”.

 


Quando a imagem nos olha



Em J’avale la vague qui me noie le soleil di midi, mais revelada do que noutras exposições da artista, a imagem fotográfica oferece um conjunto de possibilidades à experiência da redenção. Mas que o pode ela salvar? As pequenas histórias que a grande História obscureceu? Ou a realidade, a experiência física do mundo? O seu fluxo? As suas fortuitas ocorrências? Tornar visível o que não vimos ou o não podíamos ver antes do seu aparecimento [3]?


“Diria que todos os meios serão válidos para falar de redenção, embora o resgate que faço da imagem fotográfica tenha para mim particular interesse porque lhe reconheço uma carga histórica mais imediata. O gesto de reposicioná-la no presente conduz a novas leituras e ao aparecimento de outra(s) história(s) que corrompem a linearidade. A redenção torna-se possível quando se dá uma interrupção do continuum. Walter Benjamin tem uma expressão que não esqueço: escovar a história a contrapelo. Na minha perspectiva, o significado de redenção estará sempre maioritariamente relacionado com a história, mas pode estender-se a outros campos, claro”.

 


AnaMary Bilbao contraria, pela imagem fotográfica, a história entendida enquanto sucessão linear, ordenada de factos. Encontrados, os negativos transformam-se em positivos, o que estava obscurecido é iluminado. É importante sublinhar que esta operação não se esgota num sentido político ou histórico, não tem qualquer pretensão demonstrativa. Há um gozo pelo estranhamento que a ficção proporciona, pela presença fantasmagórica das imagens fotográficas que desloca o trabalho da artista para territórios mais livres, indefinidos. Com essa deslocação, o espectador é conduzido a outra experiência, familiar (como todas as que estabelece com imagens fotográficas) e, ao mesmo tempo, imprevista. Assim, na série Daydreams, vê-se envolvido numa mise-en-abyme de fantasmas, de espectros. AnaMary Bilbao encontrou um álbum de fotografias que documentam o que pode ter sido um espetáculo teatral ou uma brincadeira de família, com disfarces e transformismos. Desse álbum, escolheu quatro imagens que foram ampliadas a partir dos negativos. Todas com tamanhos diferentes, assemelham-se a stills de um longínquo e redescoberto filme. Preservam a indexicalidade da fotografia, mas superam-na não apenas por causa da luminosidade da sua presença, mas, acima de tudo, pela montagem que procede de um olhar. À encenação original — com os seus truques e máscaras, reminiscente do Grand Guignol ou do teatro de marionetas mais sombrio — a artista acrescentou uma mise-en-scène lacunar, feita de fragmentos, que é espacial e física. Há um homem (ou uma mulher) que, num gesto dramático, bebe por um copo, uma personagem grotesca que entorna um líquido numa xícara, duas mãos que levam ou abrem uma bolsa. A indeterminação (visual, cinematográfica, cultural, de género) na origem das imagens contagia a natureza e o conteúdo das cenas. Ao contrário do que escreveu Janet Malcolm, estas imagens falam, afinal, com imagens que não vemos. Nem todas, uma rompe o contrato diegético, como se espantada. Uma figura olha-nos num assombro que nos assombra. O que terá visto? Algo das outras imagens? Uma personagem daquela peça? Uma ameaça? Ou, finalmente acordada, o próprio visitante?



Na peça final, o espectador reencontrará o azul, diante das imagens e dos sons do vídeo Almost Blue. Revela-se aqui outra fonte da exposição, a canção homónima composta por Elvis Costello e interpretada por Chet Baker num dos seus últimos concertos. No ecrã, anima-se mais uma imagem retirada de um negativo de vidro. Trata-se de uma paisagem de um tempo incerto, que uma névoa torna irreal, apagando a impressão de profundidade e de vida. Há um caminho, o que parece ser um prado, vegetação, árvores. O azul permanece, mas nunca é o mesmo, e não é de todo aquele que Brecht celebrou com júbilo nas suas canções. Entretanto, um som vai saindo das imagens: é o do trompete de Chet Baker a interpretar Almost Blue. Ouve-se irreconhecível, mas dele liberta-se uma estranha convicção: a de que a morte não é, não pode a ser, a última coisa.



José Marmeleira, Junho 2021



[1] Há uma tradução em língua portuguesa pela editora Circulo de Letras-Editora Brasiliense (São Paulo, 1986).

[2] Na condição de refugiado, colocado fora do mundo entendido como espaço entre-os-homens.

[3] Siegfried Kracauer, Theory of Film – The Redemption of Physical Reality (New York, 1960).



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