Le Ciel de Midi
(ensaio sobre a exposição J'avale la vague qui me noie le soleil de midi patente na Fundação Leal Rios entre 20 de Maio e 19 de Setembro de 2021)
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É raro começar-se um texto a confessar uma limitação. Hoje vou fazê-lo: confessar a impossibilidade de abarcar em algumas linhas todas as camadas, meandros, caminhos e interpretações que encontro em J’avale la vague qui me noie le soleil de midi. A coerência e profundidade da exposição que AnaMary Bilbao apresenta na Fundação Leal Rios remete de imediato para algumas das questões essenciais do pensamento contemporâneo. Começando pela reflexão sobre o estatuto da imagem que caracteriza toda a sua obra, mas que neste caso se complementa com uma série de referências e pontos de partida que alargam ad infinitum o espetro dos problemas que aborda.
A exposição é baseada no famoso livro de Georges Bataille Le bleu du ciel (1935) e na canção Almost Blue (1987) de Elvis Costello, interpretada por Chet Baker. Em diferentes trabalhos, nos quais a artista trabalha com negativos encontrados por acaso em mercados de rua — apresentados em diferentes formatos como fotografia, projeção ou vídeo —, descobrimos uma fenomenologia das condições do aparecimento da imagem. E com ela, uma manifestação exemplar daquilo a que Heidegger chamou, no seu famoso texto A Origem da Obra de Arte, o «combate ontológico» da arte: a capacidade de vislumbrar a abertura do ser e de lidar com nossa finitude. A referência não é gratuita, já que a exposição de AnaMary Bilbao é herdeira de um pensamento que é inaugurado por Nietzsche e continuado por Walter Benjamin, Bataille, Maurice Blanchot e Georges Didi-Huberman e tem o seu foco em temas centrais como a indeterminação, o fim do absoluto ou as aporias do tempo e da representação — o que, em última análise, tem sido referenciado como a superação da metafísica.
E quem melhor do que Bataille para nos servir de guia, ele cuja escrita navega nos interstícios entre o sublime e o fortuito, o espiritual e o perturbador, o eterno e o efémero — tal como as obras de Bilbao. Uma inversão de valores, como diria o próprio Nietzsche, que encontramos, por exemplo, no céu vazio que dá título ao livro do autor francês, um céu que já não é o reflexo do transcendente, mas o abismo de uma angústia incontrolável; uma inversão que podemos reconhecer perfeitamente nas citações que se projetam na série Dirty[1] (2021) ou no título paradoxal de outra série: Découvre le ciel dans le bas (2021). Uma inversão que encontramos também, de forma mais prosaica, na passagem do negativo ao positivo e no aparecimento daquele azul que já não é, como na tradição pictórica, o símbolo do «imenso», do «puro», o ideal, mas aparece «cinza», «enegrecido», «aracniano». Um vazio que gera «vertigem», como explica a artista, o mesmo sentimento ambíguo a que Poe[2] chamou o «demónio da perversidade»[3].
Não é sem razão que se fala deste «duplo gesto de apagamento e criação»[4] na obra de AnaMary Bilbao, mas a verdade é que este duplo gesto é um gesto único, exatamente um gesto duplo, um gesto fundador. Uma tentativa de superar as dicotomias redutoras da metafísica. Da mesma forma que a luz causa ou pressupõe a obscuridade, como vemos no seu primeiro vídeo Lighted by a Searing Light (2018), o vazio é a condição de possibilidade para o surgimento do ser, para o aparecimento daquelas flores que vemos em Les fleurs soient toujours éphémères[5] (2021). Não há absoluto, não há completude — como Kurt Gödel demonstrou tão perfeitamente —, não há interpretação única. Veja-se a multiplicidade da série Daydreams (2021), na qual a artista joga com a mesma liberdade hermenêutica da narrativa visual que é tão fecunda no melhor cinema de JL Godard, Guy Debord ou Chris Marker[6] — não há certeza de um caminho traçado, como podemos ver na obra I am still not sure how long we will stay here and where we will go then (2021). Entre sonho e realidade, aparência e memória, ficção e testemunho, a imagem abre o possível: indeterminada como o líquido, que Bilbao imagina veneno, ingerido pelos protagonistas indefinidos da série Daydreams. É impossível não pensar na figura Derridiana do pharmakon, veneno e salvação ao mesmo tempo, exemplo perfeito dessa differance que reconhecemos no cerne estético e conceptual da obra de AnaMary Bilbao.
A ontologia estética proposta por Bilbao cristaliza perfeitamente as contradições inerentes à era pós-moderna: ressurgimento e desaparecimento, representação e sonho, narrativa e saturação visual. O peso do céu azul é inquietantemente estranho (Das Unheimliche de Freud), quase insuportável, como a paisagem fantasmagórica dilacerada por um grito solitário em Almost blue (2020) — um vídeo que parece um quadro de Turner montado por Jarman com música de David Lynch. O visual alterna entre escuridão e luz e o «céu do meio-dia», imaginado por Bataille, aparece no meio da noite e no fundo escuro de cada quadro. A memória encontra o seu caminho em formas e manchas impossíveis que desgastam a visão.
Como escreve Georges Didi-Huberman em Sobrevivência dos Vaga-Lumes, «A imagem é pouca coisa: resto ou fissura (fêlure). Um acidente do tempo que a torna momentaneamente visível ou legível.». Assim são as obras de AnaMary Bilbao: tempo visível, acidentes do tempo que sobrevivem ao esquecimento, vaga-lumes, «corpos luminosos, passageiros na noite», segundo a bela definição de Walter Benjamin. E, como já dissemos, a noite de Blanchot[7] e o azul do céu são duas faces da mesma moeda. A imagem salva a memória e mostra a passagem inexorável do tempo, recupera uma recordação e condena todas as outras, pretende sobreviver, fragmentada e manchada, à passagem do tempo.
A obra de AnaMary Bilbao vive nesta posição ambivalente, um espaço no qual o céu perdeu a majestade, o azul é o rasto — Derrida novamente — da corrosão física do tempo, no qual o amor é feito sobre um túmulo, onde os caminhos que não levam a lugar algum — Heidegger de novo — e há sempre um Almost que tudo quebra.
Nesta oscilação «entre a derradeira iminência da morte e uma possibilidade libertadora e redentora», como refere a própria artista ao descrever o poema de Bataille, La Mort, que dá título à exposição e que nada mais é do que o imperfeito resto do azul do céu. Uma finitude. Uma fissura. Uma incompletude. Uma marca de nitrato de prata, um gesto suspenso que abre a história, uma paisagem que já não cura.
E tantas outras coisas que estas obras escondem que não podemos abraçar na sua totalidade.
Aurélien Le Genissel, Maio 2021
[1] Referência à personagem feminina do livro, que também joga com a figura feminina como um ideal invertido.
[2] The Imp of the Perverse (1845)
[3] A vertigem que é sentida quando «se vira a melodia azul» ou a «imensidade do céu estrelado», como explica Bilbao, é a mesma que se sente quando nos deixamos «cair» na decadência (déchéance), como explica Bataille na sua obra, uma aproximação ao religioso que desconstrói a relação entre imanência e transcendência, fisicalidade e espiritualidade, como podemos ver também nas imagens da exposição.
[4] Ensaio escrito por Bruno Marchand para a exposição individual O último brilho da estrela que morre [The last gleam of a dying star] na Galeria Uma Lulik__, em Dezembro de 2018.
[5] Novamente, uma referência ao efémero e à passagem do tempo, ao devir finito do ser e à flor como antonomásia da metafísica, como foi descrita por Angelus Silesius «A rosa é sem porquê. Floresce porque floresce.» e recuperada por Heidegger para definir a relação entre o ser e o nada.
[6] «Uma ao lado da outra, as duas imagens intensificam a incerteza», explica Bilbao numa perfeita definição da montagem e do «terceiro sentido» de Roland Barthes - outra referência cuja sombra aparece em todo o processo da artista...
[7] Este absoluto que é a «outra noite» em Blanchot e que tanto se relaciona com a luz de Bataille. «Dans cette nuit opaque, je m'étais rendu ivre de Lumière» escreve Bataille. Mas este é um tema mais vasto.